Tuesday, March 28, 2006

da série trinta e três historinhas


os fãs do apocalipse

Quando eu era pequena, gostava de passear perto de um buraco grande que vivia cheio de água. (Eu sempre gostei de lugares fundos e de água. As duas coisas juntas são escuras, mas podem ser maiores do que todo o universo. O espaço sempre me fez grande companhia.) Tinha um atalho por lá, e uma mulher gorda que sempre passava muito colorida. Naquela época eu estava começando a precisar de preto. Só preto, mas eu gostava muito dela. Até por causa das cores que não combinavam e se espalhavam vastamente, até por causa da risada com batom vermelho que ficava bizarra nas mãos rachadas, até pelo saltinho embarrado com tornozelos grossos, até por causa do escândalo e do desaforo dela ainda andar tão feliz, mas principalmente pq eu sabia que ela andava como quem tava fodendo pro que diziam. Na época, eu nem sabia por que, nem que era literalmente, eu só pressentia, e tinha a sensação de que um dia eu ia ter que me apegar a isso pra sobreviver também. Cada um com seus problemas, da licença que eu vou passar. Um dia eu prestei atenção na fofoca e descobri que ela tava fodendo mesmo, com um outro cara que não era o marido dela. Eu ouvi também que ela tinha dois filhos homens, e que, imagine, o marido vivia sorrindo. Parece que o outro também. Eu gostei tanto, eu achei tão bonito. Eram todos felizes, e ela trabalhava doze horas na lavanderia (a fofoca se estendeu bastante, mas as fofoqueiras não elogiaram o trabalho dela) como ela conseguia tudo isso se eu mal conseguia sair do meu quarto, agüentava dois amigos de escola e as refeições com os meus pais? Amar requer desapego, despretensão, é doloroso, requer mais do que tempo.
Eu adorava aquela mulher. Desde então, quando ela passava, eu cumprimentava. Nunca falei mais do que isso, só cumprimentava. No ano seguinte eu me apaixonei por um menino. Primeiro de ver pela janela, depois de ver na rua, depois de ver perto do mesmo grupo de amigos, até que, um bom tempo depois, muitas risadas juntos, começamos a conversar. Deve ter sido sobre música, reclamando de alguma coisa. Adolescentes reclamam, como já disse um filósofo mirim. Eu gostava tanto dele. Eu gostava mesmo e jamais desmereceria o tamanho desse amar primitivo, era uma coisa de saber os palmos da volta dos óculos, a curva do coração que pode quebrar. Tudo isso antes de saber que ele era filho da gorda depravada colorida. Aí teve a noite. É fantástica a época da nossa vida que contém As noites, aquelas que prometem mesmo ser uma vida inteira, ou se parecem com isso, até a luz dos postes parece uma cor que brilha diferente, e naquela época, nós não tínhamos os químicos. Talvez um pouco de álcool. Eram os hormônios e a estranheza e a novidade ou inocência. Da pra separar novidade de inocência? Naquela noite, uma garrafa de vinho dividida, 14 anos, alguns planos absurdos compartilhados, falamos bobagens de todos, enjoamos de todos, fugimos da festa pra calçada da outra quadra e eu descobri que era uma mulher de iniciativa. Sentadinhos de all star, o meu primeiro beijo fui eu que roubei, foi tão assustado que eu não lembro de sentir mais do que o meu coração batendo enlouquecido. Mas eu sei que foi bom, de algum jeito sim. Ele se virou depois e disse que não podia fazer isso. (Isso também é uma sina que eu já carreguei, de um jeito ou de outro). Ele disse que não podia fazer isso porque era filho da. Da. Aquela. Ele me olhou como se eu devesse ter pena dele e segurava a minha mão. Como se tivesse tuberculose. Eu entendi que ele achava que eu era como os outros que achavam vergonhoso e não entendiam nada. Aí eu disse...mas eu adoro a tua mãe. Tantos homens gostariam de ouvir isso de uma mulher, mas ELE era como os outros. Largou a minha mão com nojo, passou a mão no nariz ranhento de começando a chorar, se levantou, gritou comigo, disse que eu debochava, depois me chamou de cadela, aos 14 anos, primeiro beijo, eu já era uma cadela. Não falou comigo, nem me xingou mais. Só não me enxergou mais. Não sofri tanto, quase nada, porque ele não era mais quem eu amava mesmo.
A mãe dele continuou colorida, grande e rindo. O pai dele morreu meio bêbado, mas rindo. O amante também. Esse tinha mais duas, mas a mulher dele era viciada em comprimidos. Eu fui aprendendo meu próprio jeito de ser colorida, aos poucos. O cara eu não sei que fim levou, mas acho que ele não deve ser muito bem se ainda não conseguiu compreender que eu só estava festejando a capacidade de amar.

2 Comments:

At 8:52 PM, Anonymous Anonymous said...

cadela com 14 anos, no primeiro beijo, é uma sina colorida (:

 
At 5:59 AM, Blogger quasechuva said...

é, eu sei, eu bem que queria que o meu primeiro beijo tivesse sido assim....

 

Post a Comment

<< Home