Tuesday, March 21, 2006

isso é mais bonito do que não prestar atenção

"Eu andarei vestido e armado com as armas de São Jorge para que meus inimigos, tendo pés não me alcancem, tendo mãos não me peguem, tendo olhos não me vejam, e nem em pensamentos eles possam me fazer mal ... cordas e correntes se arrebentem sem o meu corpo amarrar."


A "xicrinha" que era da avó – lascada - na terra vermelha, poeira e resto de osso de galinha que morreu longe do pátio, ali era longe do pátio, Serafina correu muito até encontrar, o resto da porcelana dos outros, que era sua, que não era mais, que era só um caquinho que tinha sobrado, agora entre os seus pés descalços, seus pés desprotegidos e machucados-sangrando de correr desespero na macega-pasto-rua-taquara-beira do rio, tão longe do pátio. Lá onde foram deixar o resto.
A "Fina" ainda sonha, pelo menos uma vez por semana, esse primeiro crime, da qual foi vítima e culpada. Naquele tempo, ela só queria mostrar as xicrinhas de porcelana japonesas da vó pras amigas porque era um troço tão especial, tão delicado e misterioso e secreto que cheirava a amizade de uma tarde de banho de rio escondida dos pais. Mas ela tinha as pernas tortas. E as amigas só queriam mesmo exibir o vão entre as suas pernas, o buraco entre os seus dentes da frente, o lapso na sua inteligência, o sopro do seu coração que não batia, zumbia.
As amigas, queriam mesmo se sentir melhor perto do tão pequena que ela era.
Quando acorda de um desses sonhos, a Fina crescida corre pro banheiro, e não importa a hora do dia ou da noite que for, ela age sempre como atrasada pra uma festa: se maquia com pressa, enche um copo, deixa cair o gelo, bebe com o do chão, acende um cigarro e dá umas primeiras tragadas fundas depois esquece, joga qualquer roupa curta no corpo seco, passa batom se vendo no mesmo espelhinho em que ajeita três linhas desengonçadas, cheira rápido, enche os dedos de pó, enfia na xota, enche os dedos de pó, passa nas gengivas, enche os dedos de pó, e gostaria de ter uma portinha no peito pela qual os dedos pudessem encher de pó o coração, como não tem, enfia mais esses nas narinas, ela já não sabe cheirar direito, pelo menos não quando acorda dos pesadelos.
Então a Fina sobe no salto e aí ela não tropeça em mais nada; os olhos vão pendurados em linha reta e sem brilho nem intenção. Ela acende um cigarro muito comprido, e mesmo assim ele não disfarça que ela é a Fina, linda e louca, ela abre a porta e não olha pra trás, nem liga pra ninguém, nem chama um táxi, nem tem medo nem endereço.
Sempre que acorda de um desses sonhos, ela sente a mesma coisa de quando botaram sua alegria pra dormir, quebrando as xícaras da avó e rindo depois. Ela pensa que deve matar alguém. Mas então sai de casa, e não importa que hora do dia ou da noite seja, ela vai dançar em algum lugar, nem que seja no meio de um parque e todas as crianças se assustem ao seu redor.
A Fina que só queria ser feliz, e mesmo agora, sem possibilidade mais nenhuma de voltar a sentir alguma coisa qualquer, se viciou em tentar, e arrebenta as veias por isso.

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