Friday, March 31, 2006

33 historinhas, tanto faz, acossado

eu sou, no fim das contas, a soma da vontade de cada uma das ambições que eu já tive. não faz mal, não adianta culpar ninguém, eu não culpo. quem vai responder pelas bobagens que eu já quis muito por 15 minutos pelo menos? essas todas entram. cada uma com seu quinhão de responsabilidade, sem significar que elas se realizem. um dia ter desejado morrer afogado não vai me livrar do assassinato que me espera. porque alguém desejaria morrer afogado? pergunte a virgínia woolf, eu nunca li mas vi o filme, ela pôs até pedra nos bolsos, queria ficar lá, garantida e grudada no fundo. eu não, eu queria flutuar na água e andar morto na correnteza de braços abertos. mas isso não vai me escapar do assassinato. eu pensei em morrer afogado pela primeira vez assistindo a água de escovar os dentes escorrer pelo ralo. indo embora, indo embora. eu tinha 13 anos. A ultima vez em que pensei em morrer afogado foi do mesmo jeito, sem motivo nenhum, terminando de escovar os dentes. naquela tarde eu conheci nepomucéia limpando pó do seu nariz na praça. ela tinha medo de mim. nada disso vai me livrar do assassinato.
eu não fui feito pra morrer por isso penso tanto sobre o assunto.
ela não falava sobre isso e me ouvia muitas vezes com ar de quem pergunta porque insistir nesse tema, não se incomodava, me deixava falando sobre a morte. durante os cinco anos em que ela foi feliz trabalhando e morando na zona, quando não queria prestar muita atenção numa conversa, ela ficava acariciando um gatinho com uma mão, roendo o esmalte da outra e te olhando profundamente. quanto mais te olhava, menos estava escutando. eu gostava assim, era quando ela estava bem.
o resto do tempo ela também te olhava, mas dava medo, e ela tremia ou não parava de mandar algum tipo de entorpecente pra dentro. era tão resistente essa garota. mesmo nos piores momentos sempre parecia que ela poderia estar completamente saudável dali há um mês, se quisesse. nada disso vai me livrar do assassinato.
nepomucéia tinha todas as veias do corpo muito visíveis mas os caras que fodiam no escuro nunca reclaram de nada. um dia a gorda da zona, nepomucéia sentada lá longe no pátio, embaixo de uma arvore que não dava fruta nenhuma, mas tinha umas raizes grossas que rasgavam a terra vermelha, lá embaixo sentada ela estava, era um tempo morno, ela fumava um baseado e o cabelo estava solto, passava um pouquinho do sol das cinco, por entre as folhas, um pouquinho ia parar em nepomucéia e cobria o corpo dela com um pêlo de luz opaca, a mais linda porque nela o sol não brilha, ele se acalma, um dia, naquele, a gorda da zona reparou que nepomucéia era bonita se não fossem aquelas veias. Eu via uma terra cheia de rios azuis de sangue sob um sol calmo. eu via uma coisa cuja cor não combina com nada que existe.
a mulher instalou uma luz direcionada no quarto, neomucéia passou a trabalhar de luz acesa na cara e o resto do corpo apagado. Foi depois daquilo que eu nunca mais vi ela no sol, nem no pátio, nem perto de uma planta. Foi depois daquilo que eu fui fazendo o que eu nunca pensei em fazer.
eu sou, no fim das contas, a soma da vontade de cada uma das ambições que eu já tive. mas o que eu me tornei nasceu de tudo o que eu nunca quis. do que me tiraram. nepomucéia não morreu não morreu não morreu. eu acredito nisso dentro da minha cabeça, eu juro, porque alguém ia querer se matar afogado? perguntem a virgínia woolf, não sei como ela conseguiu, mas nepomucéia leu, e nunca falou nada sobre isso, ela não tinha medo, ela não morreu.
mas isso não pode me livrar do assassinato.

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