Wednesday, May 09, 2007

olhos pra cima, ao fundo

"She dont use jelly
Or any of these
She uses vaseline" flaming lips

diego acordou.
a primeira coisa que pensou, junto com abrir os olhos, foi "porque eu ainda abro os olhos?"
já de pé, na frente do pedaço quebrado de espelho sobre a pia da cozinha,
-porra, de manhã... porque eu ainda abro os olhos?
Isso podia parar. Isso devia parar. Abrir os olhos todos os dias de manhã no que sobrou de uma escola massacrada.
Em 1995 o pastor local, Gustaf Ollork perdeu o freio da razão e metralhou uma sala de aula cheia de pessoinhas de 10 anos de idade. Antes de começar a atirar ele falava às crianças sobre esperança, e ao violão, cantou com elas umas duas canções, versões próprias de musicas do rádio que ele usava pra ensinar moral e bons costumes.
Contam que enquanto atirava, seu cabelo foi ficando ruivo, depois vermelho, depois caiu.
Talvez fosse uma peruca mágica,
talvez o diabo tenha tomado aquele corpo, talvez tenha havido uma fogueira na cabeça de Gustaf, ninguém sabe. O certo é que depois de matar 25 crianças, ele saiu de dentro da escola careca, coberto de sangue, com a metralhadora quente e vazia numa das mãos e, com a outra mão, vinha arrastando pelo pé o corpinho frio e carnudo de Gini, uma gorducha tranquila e doce que sempre usava xadrez.
Na porta, segurando a arma e a carne, ele gritou
"eu só estava caçando o almoço".

Diego sempre odeia o próprio café. Fazer café é como fritar um ovo ou fazer arroz. Parece muito fácil e simples se voce for uma dessas pessoas que acerta o ponto. Se não tiver esse dom, nunca vai aprender. E estará fadado a café queimado e ruim, arroz cru e empapado e ovo frito despedaçado pra sempre.

O irmãozinho de Diego estudava naquela 4ª série há duas semanas quando a merda aconteceu. Como era franzino e tímido sentava bem no fundo, num canto, um lugar onde pudesse sempre passar despercebido e imune ao mundo. Foi o único sobrevivente da turma. Ficou só com um braço esmigalhado. Diego pensava que seria ainda mais difícil pro irmão arranjar namorada agora, além de tímido, sem um braço, e que o pequeno certamente acabaria por pressão das circunstãncias virando gay. O que não aconteceu. Depois de dois anos de pesadelos, fantasmas e anorexia nervosa, o menino então com 12 anos, órbitas fundas e 15 quilos se enforcou nos fundos da escola.
diego tinha uns 18 anos então.
não queria virar gay nem ter uma namorada. não quis mais ir pra faculdade, nem cortar o cabelo
nem ficar triste
nem buscar uma religião.
Não queria ter um carro, nem vícios, nem animais de estimação.
Não queria escolher que camisa vestir.
Não queria aprender a abotoar. Nem ter nada que se perca.
Diego não queria esquecer que tudo o que se tem
existe pra perder.
Quando fecharam definitivamente a escola, tres anos depois do acontecido, seu irmão já morto,
os pais já tortos e secos,
diego fechou a porta de seu quarto de rapaz começando a viver,
e entrou pelo portãozinho que rangia e tinha duas gotas vermelhas que a perícia não limpou.
Naquela época, o pátio da escola era só uma terrinha pobre, fina, poeirenta, cheia de restos de fita amarela, "não se aproxime área de crime".
Já passaram dez anos desde que ele chegou.

Hoje ele acordou e pensou, como ele pensa todas as manhãs, porra, porque eu abri os olhos.
Lavando o rosto e durante o café, ele pensou, porra, porque eu abri os olhos.
Aí ele abriu a porta e foi lá fora
no pátio que agora era um vivo mar macio de verde e vermelho
então lembrou:
ah, as papoulas.
Diego acorda todos os dias de manhã pra correr e sorrir no meio das suas papoulas.

6 Comments:

At 11:55 AM, Anonymous Anonymous said...

taí ó, tô precisando de um motivo colorido pra acordar todas as manhãs. hummmm, já sei =)

 
At 5:01 PM, Blogger Carlos Spohr said...

bah, de um gosto finíssimo... imagino um cenário no cerrado, uma construção de madeira torta com duas portas e escadinhas de tres degraus nelas. E que bela contradição as papoulas no cerrado...

 
At 8:18 AM, Blogger quasechuva said...

éééé
papoulas são bonitas
leves
delicadas
e opiáceas
magina que bonito
um quintal em vermelho

 
At 9:13 AM, Blogger Marcos Rohrig said...

putz, me senti assim hj de manhã, vou continuar me sentindo assim por mais um bom tempo, tvz as coisas mudem, tvz eu continue me sentindo assim.

 
At 2:46 PM, Blogger quasechuva said...

plante papoulas meu bem
plante cactus
plante palitinhos de picolé
mas tenha um jardim secreto pra onde correr

 
At 8:51 AM, Blogger Marcos Rohrig said...

dá trabaio véia!

 

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