Wednesday, February 22, 2006

nem todas as fotografias do mundo


É obvio que por entre as frestas da veneziana você não pode ver tudo, mas basta pra saber o tom do pôr do sol.
Clarice pararia de fumar se isso fosse possível, não fugiria e também não estaria em estado de fuga se isso fosse possível.
Teria se apaixonado somente aquelas primeiras três vezes de quando se é jovem demais para qualquer conseqüência, depois chega. Depois tudo começa a ter cores demais pra tela de menos, o espaço de cada dia da vida não tem como conter tudo o que pode acontecer.
Não gosta de saber disso. Vai até a sala e repete a mesma música antes que ela acabe. Por um buraco maior da janela vê que no verde a luz das seis da tarde brilha muito mais bonito do que o olho de qualquer pessoa que existir.
Essa também é uma paixão na qual ela acha que exagera. Queria pintar aquela árvore como se ela estivesse viva como agora ainda está. Clarice tem esse problema de querer as memórias todas guardadas vivas e pra isso é preciso sangrar as mesmas feridinhas de tempos em tempos e se alimentar do que era antes.
Mas o segredo da sua idade é ir aprendendo a dosar quanto de cada coisa, e deixar fechar aquelas que já secaram. Não adianta ir tão fundo.
Clarice sempre pensa nas conseqüências do que diz. De ficar, de ir embora, de desligar ou não o ventilador. De apostar no que não deve pra se proteger de um prêmio pesado demais. Nas conseqüências ter esperado que chovesse durantes semanas, e de repente adorar o sol amarelando, pelas frestas, de onde não se vê tudo, mas com um pouco de boa vontade, se tem uma boa visão do que está por vir. Não é como amar um garoto dourado. De muito perto, só parece a morte violenta e boa do entardecer de um dia muito quente, é quando o deserto não precisa mais fazer sentido, quando o gelo queima porque árvores secas também são corpos com pecado no outono. É como amar o garoto que faz ouro do que precisa ser digerido. É como quebrar uma agulha. O garoto que faz ouro não pede licenças, ele as merece, sem ter crime nenhum nisso. Só por ter andado um inverno inteiro sobre os trilhos do trem e ter aprendido a paisagem, o garoto que faz ouro descobriu de onde o sol tira o dia seguinte. Quando ela crescer ele amaria. Alguma coisa nela. Ou alguma coisa atrás da cortina. Ele sempre está lá. E esse é mais um conto indiano, que começa num lugar pra terminar em outro bem diferente.

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